"O Guardador de Rebanhos", do heterónimo
Alberto Caeiro
Num meio-dia de
fim de Primavera
Tive um sonho como
uma fotografia.
Vi Jesus Cristo
descer à terra.
Veio pela encosta
de um monte
Tornado outra vez
menino,
A correr e a
rolar-se pela erva
E a arrancar
flores para as deitar fora
E a rir de modo a
ouvir-se de longe.
Tinha fugido do
céu.
Era nosso demais
para fingir
De segunda pessoa
da Trindade.
No céu tudo era
falso, tudo em desacordo
Com flores e
árvores e pedras.
No céu tinha que
estar sempre sério
E de vez em quando
de se tornar outra vez homem
E subir para a
cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda
à roda de espinhos
E os pés espetados
por um prego com cabeça,
E até com um trapo
à roda da cintura
Como os pretos nas
ilustrações.
Nem sequer o
deixavam ter pai e mãe
Como as outras
crianças.
O seu pai era duas
pessoas -
Um velho chamado
José, que era carpinteiro,
E que não era pai
dele;
E o outro pai era
uma pomba estúpida,
A única pomba feia
do mundo
Porque nem era do
mundo nem era pomba.
E a sua mãe não
tinha amado antes de o ter.
Não era mulher:
era uma mala
Em que ele tinha
vindo do céu.
E queriam que ele,
que só nascera da mãe,
E que nunca tivera
pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade
e a justiça!
Um dia que Deus
estava a dormir
E o Espírito Santo
andava a voar,
Ele foi à caixa
dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez
que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo
criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro
criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado
na cruz que há no céu
E serve de modelo
às outras.
Depois fugiu para
o Sol
E desceu no
primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha
aldeia comigo.
É uma criança
bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao
braço direito,
Chapinha nas poças
de água,
Colhe as flores e
gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos
burros,
Rouba a fruta dos
pomares
E foge a chorar e
a gritar dos cães.
E, porque sabe que
elas não gostam
E que toda a gente
acha graça,
Corre atrás das
raparigas
Que vão em ranchos
pelas estradas
Com as bilhas às
cabeças
E levanta-lhes as
saias.
A mim ensinou-me
tudo.
Ensinou-me a olhar
para as coisas.
Aponta-me todas as
coisas que há nas flores.
Mostra-me como as
pedras são engraçadas
Quando a gente as
tem na mão
E olha devagar
para elas.
Diz-me muito mal
de Deus.
Diz que ele é um
velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar
para o chão
E a dizer
indecências.
A Virgem Maria
leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo
coça-se com o bico
E empoleira-se nas
cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é
estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus
não percebe nada
Das coisas que
criou -
"Se é que ele
as criou, do que duvido." -
"Ele diz por
exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não
cantam nada.
Se cantassem
seriam cantores.
Os seres existem e
mais nada,
E por isso se
chamam seres."
E depois, cansado
de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus
adormece nos meus braços
E eu levo-o ao
colo para casa.
Até que nasça
qualquer dia
Que tu sabes qual
é.
Esta é a história
do meu Menino Jesus.
Por que razão que
se perceba
Não há-de ser ela
mais verdadeira
Que tudo quanto os
filósofos pensam
E tudo quanto as
religiões ensinam ?
Sem comentários:
Enviar um comentário